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| Conselheira Tutelar de Estância, Marisa Barros - Foto: Divulgação |
20 anos de ECA, uma conquista que precisa vencer a distância plena entre a lei e o efetivo direito
Marisa Barros (*)
O Brasil há mais de vinte anos ainda vivia sob o manto sangrento da ditadura militar e o povo ocupava as ruas pela democracia com o objetivo de alcançar as eleições diretas na necessidade de uma nova Constituição Federal, construindo, assim, uma verdadeira “revolução” política.
Naquela época os grupos de extermínio eram evidentes e eliminavam meninos e meninas pobres impunemente. O massacre era escandaloso. A justificativa era defender o patrimônio dos comerciantes. Assim, meninos pobres eram considerados ameaça pública. A lei então em vigor, O Código de Menores, baseava-se na doutrina da situação irregular, responsabilizava a própria criança ou adolescente pelo abandono em que se encontravam. Permitia o simples recolhimento dos que estivessem "perambulando" nas ruas, atribuindo a eles a responsabilidade pela situação em que se achavam. Portanto, a lei tinha destinatários específicos que eram os pobres, evidentemente, a maioria era negra. E, dessa maneira, os já punidos pelo destino tinham um Código para castigá-los mais ainda. E o mais grave: de forma institucional clara, objetiva, selada em legislação armada de elementos perniciosos!
Vindos os tempos de chumbo, nascia, em parto feito por tantas mãos e olhares, uma das leis mais bem fundamentadas do Brasil que resultou no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. E é importante frisar que ela foi construída e elaborada pela sociedade civil, sem esquecer que a sua elaboração efetiva teve também a participação das próprias crianças e adolescentes, sendo concebido num contexto de uma nova forma de ver, considerar e governar crianças e adolescentes. Trouxe-nos na sua transformação em ato legal a idéia inédita de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em situação peculiar de desenvolvimento, sendo, portanto, prioridade na elaboração de políticas públicas.
O ECA no seu art. 4º explicita a importância da destinação privilegiada de recursos para a realização das políticas garantidoras de direitos, trazendo ainda a perspectiva de descentralização do poder fortalecendo a cultura democrática, ainda frágil à época, de participação da sociedade nos Conselhos Tutelares e nos Conselhos de Direitos,instâncias locais zeladoras de direitos, garantia maior de distribuição do poder.
A nova lei deixa de punir crianças pobres para ser um instrumento que defende os direitos normatizados de todas. A partir de então, se há uma criança vivendo nas ruas, sabe-se que falharam o Estado, a sociedade e a sua família simultaneamente.
O Brasil comemora 20 anos do ECA, que é uma referência histórica que exigiu uma nova cultura política, uma ampla revisão na forma de elaborar as políticas públicas que deveriam passar a ser concebidas à luz deste conjunto de idéias.
As mudanças foram muitas, no entanto, soam ainda como um ensaio geral, para uma mudança mais importante. A realização plena dos direitos não permite brechas entre uma política e outra, entre um direito e outro. Quando a política pública não é universalizada, não chega a todos, e quando o conjunto das políticas é fragmentado não se efetiva a Proteção Integral que significa todos os direitos para todas as pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar.
Apesar de 20 anos, ainda existe uma distância enorme entre o que está escrito na lei e o acesso ao direito. As populações mais jovens ainda carregam o pesado fardo da culpa pela precária situação em que se encontram. A sociedade conservadora não mudou e insiste em atribuir a elas a responsabilização, seja pela própria ‘desocupação’, ou pela violência urbana. Neste cenário as pessoas ainda são tratadas conforme a cor da pele e sua classe. É importante compreender que, assim como os direitos são interdependentes e a realização de um implica na realização de outros, quando há uma violação de direitos, ocorre também uma série de violações subseqüentes.
Alguns usam todos os meios para tentar convencer que o ECA é uma lei inadequada. Há interesses diversos por trás deste esforço. Certamente não são os mesmos que defendem uma sociedade mais justa, mas sim os daqueles, por exemplo, que ficaram ricos à custa da exploração do trabalho de crianças, Ressalte-se que na mesma direção vão os que querem ver reduzida a idade penal pois, em verdade, não pensam na prevenção da violência, mas na ‘limpeza urbana’.
Falar de cidadania das populações mais jovens é um enorme desafio em uma sociedade de maioria conservadora em que os direitos de muitos são preteridos em nome dos privilégios de pouquíssimos. Dessa forma, mesmo com uma idade mais madura, a lei ainda custa a se efetivar na íntegra para todas as crianças e adolescentes do país. A sociedade desigual promove diferentes acessos ao direito que é universal. As mudanças acontecem aos poucos e dependem de muitos fatores, como trabalho digno para as famílias, educação de qualidade, esporte, cultura, formação profissional, moradia decente e lazer na própria comunidade; mas, sobretudo, de concepção política e gestão pública ética e competente.
É importante e necessário reconhecer os avanços, que não foram poucos, entretanto, é preciso atenção redobrada para defender a lei que vive ameaçada por aqueles que ainda não entendem e permitem a violência contra crianças e adolescentes. Desta forma, conclamamos a sociedade em geral para ter um olhar diferenciado para nossa infância e juventude, pois, como bem disse Betinho (Herbert de Sousa): “No dia em que olharmos paras as crianças pobres com o mesmo olhar que temos para os nossos filhos ai, sim, começará a mudança”.
* Marisa Barros – Conselheira Tutelar em Estância, Vice – presidente do Fórum Associativo de Conselhos Tutelares do Sergipe, representante do Estado de Sergipe no Fórum Nacional de Conselhos Tutelares (FCNCT).

